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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Deixe espaço para a imaginação

É importante que o mestre descreva o cenário direitinho, pra que os jogadores possam sentir-se realmente imersos no ambiente. Literatos que gostam de longas descrições existem aos montes, o exemplo mais famoso talvez seja J.R.R. Tolkien na trilogia O Senhor dos Anéis (Em outros livros ele vai mais direto ao ponto, com mais ação e mais elipses). O problema é que, além de atrasar a trama, descrições prolongadas e muito específicas tiram grande parte da diversão da leitura, que é imaginar como aquelas palavras se traduzem pros outros sentidos. 


Veja as ilustrações de Galadriel que achamos numa pesquisa rápida do google imagens. Apesar das variações estilísticas, é bem fácil determinar qual a descrição original da personagem. É bastante claro que ela tem longos cabelos loiros, é alta, pele clara e perfeita, usa um looongo vestido de seda, tem esse ar altivo dos elfos, etc. A Galadriel que todos imaginamos ao ler o livro é razoavelmente parecida.


Outro exemplo são personagens que tem uma referência visual direta, como um desenho ou filme. Veja como as representações são bastante semelhantes, mesmo que haja diferenças estilísticas.

Isso acontece porque a descrição inicial é muito específica. Nesse caso é preciso muita prática imaginativa pra conseguir estilizar a sua versão do personagem de forma que ele fique diferente dos outros. Claro, não é uma regra absoluta, mas uma forte tendência que atinge a maioria das pessoas. A psicologia explica esse fenômeno, nossa dificuldade de recriar uma imagem que já vimos baseado na descrição textual dela. Uma vez que a gente associa a descrição à imagem, sempre que a descrição entrar em cena, a imagem é puxada instantaneamente.

O que eu sugiro? Que quando você for jogar (principalmente narrar, mas também ao descrever suas ações como jogador) descreva sua ação de maneira clara mas não exageradamente específica. Como saber o limite? Testando. Quando suas descrições começam a ficar absurdamente verossímeis, pode parar. Não é necessário adicionar pó de pirlimpimpim, uma descrição em aberto gera muito mais frutos do que uma descrição indutiva (quando você dá o começo da frase e deixa o resto pra imaginação).

Faça exercícios de roteiro. É, roteiro de cinema. Geralmente roteiros são coisas ascéticas com poucos adjetivos. Experimente pegar um texto de um livro e retirar a maioria das palavras modificadoras, advérbios e adjetivos. Coisas como "muito gostoso", "pouco antes da hora", "flores vermelhas", tudo cai. Cores, nada de cores, nem preto e branco. Números só quando necessário, nunca diga a hora exata, diga "pela manhã" ou "à tarde". Nada que possa dar alguma dica de como as coisas são. Artigos, só os indefinidos: uns, umas, um, uma. Não é eliminar a descrição, mas eliminar as especificidades. A Branca de Neve continua sendo bela, mas não a mais bela das princesas. Depois, reescreva uma nova descrição baseado no texto ascético que você fez e compare as três versões. Um exemplo disso:


Um homem de terno preto, gravata torta, blusa semi-aberta manchada de sangue é empurrado em cena e cai sentado numa cadeira. O rosto coberto com uma maquiagem borrada e horripilante. Um filete de sangue escorre do lado esquerdo de sua cabeleira desgrenhada enquanto ele levanta o rosto com um olhar insano e um sorriso sádico*.
vira:

Um homem de terno e gravata é empurrado em cena e cai sentado numa cadeira. Sua roupa está desarrumada e ele usa maquiagem horripilante. Sangue escorre pela face enquanto ele levanta o rosto, sorrindo**.
e depois:
O psicopata é arrastado e jogado na cadeira de interrogação, ao centro da sala. A luz do lugar fraqueja, tornando a maquiagem borrada do lunático ainda mais horripilante. Suas roupas estão sujas, amarrotadas e manchadas de sangue como se fossem amassadas na forma de uma bola de papel e mergulhadas em tinta vermelha. O sangue da camisa é diferente daquele que escore do lado esquerdo da face do palhaço. Em super câmera lenta, ele ergue o rosto para revelar um sorriso insano, ácido, cheio de malícia e sadismo. A luz projetada de cima para baixo projeta sombras fortes que recobrem olhos, nariz e boca, deixando-o ainda mais horrendo***.
*trecho de um roteiro meu não aprovado por excesso de descrição.
**versão aprovada do mesmo roteiro.
***versão livre.

Perceba como é possível acrescentar diversos elementos sem alterar a dinâmica da cena. Perceba também que a primeira descrição funcionaria perfeitamente num jogo de RPG. Há o mínimo de detalhe para que a cena seja verossímil e imaginável. A segunda é um resumo que chega aos limites da compreensão. A terceira é exagerada, uma versão literária da ação. Perceba o tamanho do texto e o tempo que a leitura toma para descrever duas ações simples: o personagem é jogado na cadeira e ergue o rosto sorrindo. No entanto, essa versão é a única que realmente ambienta a cena e cria uma tensão apenas pela presença do personagem na local. Há um jogo de realismo e misticismo aqui, que claramente nos remete ao aquiinimigo do Batman sem nunca relacionar diretamente as duas coisas

Esse exercício vai te ajudar a entender os elementos principais que constróem uma descrição.  Entenda: não é a descrição ascética que nos interessa, isso é pra roteiristas. Também não nos interessa a descrição completamente vazia: "...vocês entraram na casa. _Como é a casa, mestre? É uma casa". À partir dos elementos básicos da descrição - onde são necessários alguns adjetivos - você passsa pro nível em que acrescenta sua própria imaginação de mestre. É a camada de descrição que sua mente produz, seu estilo, o que vai diferenciar a sua Galadriel das outras. Só que cada um pensa diferente do outro. A mesma descrição dá resultados diferentes em pessoas diferentes, porque cada um tem uma bagagem cultural diferente. Portanto, mesmo que você seja extremamente específico nas suas descrições, a chance das pessoas imaginarem exatamente o que você imaginou é praticamente nula. Você deve entender que existe um limite na nossa comunicação, a gente ainda não pode ler as mentes dos outros. 


Lembre-se: Você está trabalhando com realidede e fantasia.

O seu trabalho como mestre é saber achar o limiar entre as coisas que existem na sua cabeça e a descrição ascética (algo entre a primeira e a terceira versões do texto ali de cima). Procure alternar entre frases diretas "Eu vou comer pão" e indiretas "O pão será comido por mim", entre descrição factual "Ele tinha 2,10m de altura" e metafórica "Ele era um gigante, quase tocava o céu", você está trabalhando com realidade e fantasia. Esse meio termo é o ponto ideal da descrição para um jogo de RPG ou qualquer descrição direcionada para o imaginário de outras pessoas (Se você estivesse escrevendo um artigo científico, é melhor que você seja minucioso, exato e detalhista). Na verdade todo mundo já faz isso de alguma forma, a gente omite alguns detalhes pra facilitar a comunicação. Muitas vezes somos incapazes de traduzir em linguagem aquilo que imaginamos.

Outra maneira de exercitar-se durante o jogo: Faça suas anotações sempre de maneira ascética. Personagens, missões, cenários, tudo. Durante o jogo, acrescente, no improviso, sua camada de estilo e imaginação. Com alguma experiência, você vai ser capaz de criar jogos inteiros baseado em descrições instantâneas (o difícil é lembrar de tudo depois).

Pra que esse post não fique maior ainda, vou acabar por aqui. Eu não cheguei à conclusão ainda. Da próxima vez trago mais exercícios e referências pro assunto.

Mestres, lembrem-se: O jogo não acontece só na sua cabeça, há outras pessoas jogando também e essas pessoas precisam entender o que tá acontecendo. 
Jogadores, entendam: Sua imaginação também faz parte da criação do mundo, adicione seu próprio estilo nas suas ações e ajude as outras pessoas a fazerem o mesmo.


Se deixar eu escrevo até amanhã!


Um abraço do seu chato, mas querido, Mestre Suna


5 comentários:

  1. Eu concordo em usar a terceira opção.
    Eu vejo no RPG, uma forma não só de criar descrições de seres e cenários, mas também de descrever sensações.
    Mestres que descrevem apenas cenários e seres não passa para os jogadores a atmosfera do jogo.
    Por isto fiz aquelas 3 postagens sobre Climatização e Ambientação de campanhas.

    Acho q o mestre deve se importar com as 2 coisas:
    - "Visual"
    - "Sentimental"

    só assim ele vai atingir uma atmosfera perfeita para a narrativa.

    É Claro que não precisa ser algo longo e arrastado, numa descrição extremamente alongada.
    Poderia muito bem ser a primeira opção do seu texto, com alguns toques da terceira.
    =)

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    1. É que eu dei um meio fail na hora de escrever. Como o primeiro e o segundo já estavam escritos eu tentei fazer um novo texto diferente dos dois e exagerei um pouco no tempo, tem pouca ação pra muita descrição. Até que ficou menos exagerado que eu achei que deveria ter ficado, só que se a cada sentar na cadeira e levantar o rosto você demorasse um parágrafo desses pra descrever as ações seu jogo ia demorar 3 horas pros personagens saírem do quarto auhuhauha

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  2. Pra mim tudo depende do objetivo. Ou seja, o peso de detalhamento de uma descrição vai depender sempre da importância da cena, por mais que os personagens não reconheçam que ela é fundamental. Assim consigo dar, nas entrelinhas, elementos para que eles trabalhem suas estratégias e consigam realmente sentir-se na cena.

    O problema é que muitos jogadores preferem o "Tá. Eu ataco com a espada".

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    1. 2 coisas: Sim, depende do objetivo, eu não queria entrar nessa discussão porque se não o post ia ficar muito grande demais. Na continuação eu abordarei principalmente as intenções e técnicas dramáticas pra atingir essas intenções.

      Outra: tem esses jogadores. Mas tem uma outra coisa que é o mestre apelão que não deixa seus jogadores jogarem. O jogador fala "eu vou saltar sobre a mesa, apoiando uma mão sobre a arma que tá na frente do cara, enquanto jogo uma faca no capanga da direita com minha outra mão. Aí eu vou atirar no capanga da esquerda e render o cara". Daí, ao invés do mestre simplesmete dizer "sua parada de dados vai ser dividida em duas: teste de acrobacia e arremesso da faca. E aí os seus inimigos vão fazer isso e aquilo, quer mudar sua ação? não? ok, então role os dados". O mestre faz aquela cara "ixi cara... complicado isso aí... vc teria que... nossa... que difícil... tá, pode fazer... dificuldade 9 porque divide a parada de dados, e aí blab la blab albalb *cagando regras* bla bla bla. Rola aí, se vc falhar o cara já tirou 4 sucessos no teste dele e vai te dar um tiro a queima roupa."

      E aí depois de repetidas tentativas, o jogador simplesmente desiste e fica no "Tá, eu ataco com a espada". Eu CANSEI de viver isso como jogador.

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  3. O problema é que muitos jogadores preferem o "Tá. Eu ataco com a espada".²

    não podia ter exemplo melhor!

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